sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Pequeno resumo de "O Príncipe" de Maquiavel

Maquiavel foi o único velhaco sincero da História; viveu numa época em que as pessoas
falavam como anjos e agiam como ladrões. Foi contemporâneo do Rei Fernando da Espanha: do Papa Alexandre VI, que envenenava os inimigos e depois lhes abençoava as
almas; e do filho desse Papa, César Bórgia. Não era permitido aos Papas casarem-se, mas eles
freqüentemente se permitiam ter filhos. César Bórgia foi o digno filho de um digno pai. Matou seu irmão mais velho, seu cunhado, e inúmeras outras pessoas que se lhe atravessaram no caminho.
O Rei Fernando, o Papa Alexandre VI e César Bórgia não foram figuras isoladas. Foram, sim,
os legítimos representantes das idéias de seu tempo. Dirigindo a atenção do povo para as coisas do céu, eles a desviavam das coisas da terra. Não tinham nenhum interesse pela justiça nem pela piedade. Cuidavam apenas do poder e da riqueza. Fingiam acreditar na palavra de Deus, mas realmente apenas ouviam a voz da avidez e da cobiça. Consideravam a Bíblia como um manual de escravatura. Seus mandamentos não tinham nenhum valor para eles, que visavam apenas o pináculo da glória, a despeito de toda oposição. Supremacia e nada mais era a meta que almejavam e, para atingi-la, a única conduta que julgavam digna era a da brutalidade. Aliás, esse era o ideal dos ambiciosos europeus no tempo de Maquiavel. Todos sabiam que eles precisavam do mais realista dos códigos de ética — um manual que lhes ensinasse como lograr, roubar e matar o próximo a fim de atingirem seus objetivos; um livro, em suma, que fosse um verdadeiro tratado de ladroeiras e velhacarias.
Maquiavel fez o que se pedia. Pintou os homens como eles eram naquela época e não como
fingiam ser. Realista como era, demonstrou ser a Europa nada mais do que um formigueiro de
selvagens. E então, com uma franqueza brutal, explicou aos interessados, na única linguagem que podiam entender, o que precisavam fazer para prosseguir na sua selvageria.
Deu a um mundo que fingia se ofender com isso, mas que na realidade se regozijava, um novo decálogo de brutalidade. Maquiavel foi um bárbaro, como o resto dos seus contemporâneos; mas, ao contrário do resto, não foi hipócrita.
As idéias de Maquiavel estão claramente expressas na obra O Príncipe. Esse livro é o manual
da opressão. Maquiavel era um ardente admirador de César Bórgia, e em O Príncipe usa esse tirano como um modelo de grandeza. Aconselhou o novo príncipe de Florença, Lourenço de Médicis, e todos os outros governantes a empregar os métodos de Bórgia se quisessem apoderar-se do governo de um novo Estado e reter sua soberania sobre ele. Maquiavel não se interessava de nenhum modo pelo bem-estar dos súditos; sua preocupação consistia apenas na grandeza do príncipe. O livro constitui o melhor comentário sobre o estado de moralidade na Europa durante os séculos XV e XVI, embora não tivesse sido escrito com tal intenção.
A fim de traçar um quadro exato de O Príncipe, experimento condensar suas doutrinas num credo maquiavélico de dez mandamentos:
1º — Zelai apenas pelos vossos próprios interesses.
2º — Não honreis a mais ninguém além de vós mesmo.
3º — Fazei o mal, mas fingi fazer o bem.
4º — Cobiçai e procurai obter tudo que puderdes.
5º — Sede miserável.
6º — Sede brutal.
7º — Lograi o próximo toda vez que puderdes.
8º — Matai os vossos inimigos e, se for necessário, os vossos amigos.
9º — Usai a força, em vez da bondade, ao tratardes com o próximo.
10º — Pensai exclusivamente na guerra.

Examinarei agora cada um desses mandamentos:

1º — Zelai apenas pelos vossos próprios interesses
— Maquiavel era moralmente cego. Não conseguiu ver o mundo como uma unidade. A humanidade, para ele, não era uma cadeia de irmãos no sofrimento, mas uma horda dispersa de brutos e simplórios. Acreditava que era dever dos brutos usar os simplórios para a consecução de seus fins. E o melhor caminho para usá-los, pensava, consistia em oprimi-los. “Porque, de acordo com as leis da floresta, se não oprimirdes os outros, os outros oprimir-vos-ão. A força é direito; portanto, o forte precisa sempre defender sua força e fazer leis para sua própria proteção contra os fracos. O dever do fraco é servir ao forte, e o dever do forte
é servir a si mesmo.”
2º — Não honreis a mais ninguém além de vós mesmo. — “Aquele que é a causa da grandeza
de outro”, escreveu Maquiavel, “é tolo.” “Pugnai pelos interesses de outro apenas quando puderdes fazer bom uso deles. Mas no momento em que esse outro ameaçar tornar-se popular, matai-o. Para o homem ambicioso é um imperativo não possuir rivais.” Uma nação bem-sucedida, na opinião de Maquiavel, necessita apenas de um chefe. Todos os outros homens devem ser escravos. Um príncipe pode receber, mas não conceder benefícios.
3º — Fazei o mal, mas finji fazer o bem. — Maquiavel acreditava sinceramente no valor da
insinceridade. Sua franqueza aconselhava aos estadistas nunca serem francos. Ser bom, disse ele, é prejudicial; mas aparentar ser bom é útil. “Aquele que propõe a si mesmo ser um perfeito modelo de bondade entre todos os outros homens será o único que se arruinará.” A fim de preservar seu poder — e seus roubos — é muitas vezes necessário a um príncipe, disse Maquiavel, agir contra a justiça, a caridade, a humanidade e a boa-fé. Seus súditos, porém, não devem suspeitar disso. Devem, pelo contrário, ingenuamente pensar que ele é nobre, compassivo, piedoso e justo. Em outras palavras, um hábil condutor de homens deverá fazer seus súditos acreditarem que ele os está protegendo no mesmo momento em que os está oprimindo; deverá demonstrar piedade nas suas palavras quando, só existir o mal no seu coração.
4º — Cobiçai e procurai obter tudo o que puderdes. — Um príncipe, de acordo com o código
brutal de Maquiavel, não deverá considerar nada mais do que os seus próprios desejos; não deverá, assim, ter a mínima consideração para com os direitos dos outros. “Roubai tudo o que puderdes e fazei silenciar os que se queixarem; aparentai sempre ser um príncipe liberal. Não ide muito longe, porém, em vossa avareza, não porque seja isso um erro, mas porque é perigoso possuir demais. É melhor roubar os estrangeiros, que são fracos para tomar uma vingança, do que aumentar os impostos de vossos concidadãos, que podem voltar sua cólera contra vós. Em outras palavras, roubai os fracos e acautelai-vos do forte; por esse caminho vos tornareis grandes homens.”
5º — Sede miserável. — Maquiavel prossegue no seu bárbaro código de ética, aconselhando
seu príncipe a resguardar o próprio dinheiro e a gastar apenas o dos outros. Não é sábio para um príncipe ser muito generoso para com seus súditos. Se o for, a princípio granjeará grande reputação, mas depois, quando seus fundos se esgotarem, ver-se-á obrigado a aumentar os impostos do povo. Isso naturalmente o desgostará e assim um príncipe sempre acabará por se arruinar se quiser ser liberal com o dinheiro obtido em seu próprio país. Com o dinheiro roubado na guerra, no entanto, deverá ser generoso o máximo possível, pois desse modo seus súditos não somente o louvarão, como se prontificarão prazerosamente a lutar e morrer por ele.
6º — Sede brutal. — Um príncipe, cuja missão é escravizar todo mundo, não pode nunca ser
suave. Maquiavel salienta o fato de ter César Bórgia sobrepujado todos os seus contemporâneos em glória apenas porque o fizera também em crueldade. (Esqueceu-se, porém, de observar que a glória de César Bórgia acabou por ofuscar-se devido a essa mesma crueldade.) Outro homem cuja “piedosa crueldade” Maquiavel admirou enormemente, foi o Rei Fernando da Espanha. Somente um bruto, escreve Maquiavel, pode ser um grande rei. Os amantes da justiça, os inimigos da crueldade, os imperadores humanos e bondosos têm sempre um triste fim. A bondade nunca é compensadora. Um príncipe, para conservar a obediência de seus súditos e o respeito de seus soldados, terá de sufocar em si o homem e desenvolver a besta.
7º — Lograi o próximo toda vez que puderdes. — Maquiavel insiste muitas vezes em que
para esmagar seus competidores, um homem precisa deliberadamente convertê-los em brutos. Recomenda ao príncipe cultivar a ferocidade do leão e a astúcia da raposa. “O que melhor praticou as manhas da raposa foi o que obteve sempre o maior sucesso.” A força é maior do que a justiça e a mentira mais poderosa do que a verdade. É fácil para um governante quebrar sua promessa.
“Nenhum príncipe necessita arranjar razões para encobrir uma quebra de palavra, pois quase todos os outros homens são estúpidos.” Mundus vult decipi — o mundo está sempre pronto a ser tosquiado. Maquiavel, é preciso frisar, foi o pai da moderna diplomacia e da moderna maneira de negociar em nossos dias, um homem de negócios simpatiza mais com os mandamentos de Maquiavel do que com as leis de Jesus.
Continuarei, porém, com a análise de O Príncipe.
8º — Matai os vossos inimigos e, se for necessário, os vossos amigos. — A época em que
viveu Maquiavel era quase desprovida de humanidade. Entre os principais esportes do século XVI contavam-se a caça aos animais e a queima dos hereges. Um dos imperadores do tempo, desejando estudar o processo digestivo do alimento no corpo humano, fez com que fossem dissecados na sua presença dois homens vivos, exatamente como um estudante de Medicina disseca um casal de rãs. Séculos de guerra quase contínua haviam endurecido os sentimentos e menosprezado a vida dos homens. O assassínio era apenas um incidente e a traição ao amigo coisa aceita como regra no mundo daqueles dias. Os leitores de Maquiavel estavam assim perfeitamente aptos a seguir seus conselhos.
9º — Usai a força, em vez da bondade, ao tratardes com o próximo. — Maquiavel explana
aqui a regra de que é melhor ser temido do que amado. “Quando tiverdes um príncipe rival fora de vossos domínios, fazei uma investida contra ele e destruí inteiramente as raízes de sua família; mas fazei assim, porque, se não o fizerdes, os remanescentes dela algum dia se vingarão do mal que vos ficaram devendo. Um homem ambicioso não pode ser cruel apenas em parte; sê-lo-á de um modo completo ou terá de renunciar à sua ambição. Além disso precisa de um método, embora não haja medida para a sua crueldade. Quando tiverdes de vos apoderar de um Estado, ou de roubar um homem, deveis empregar toda a violência de uma só vez, para que o ofendido dela depressa se esqueça; por outro lado, se fordes obrigados a conceder benefícios, concedei-os pouco a pouco, a fim de que eles sejam sempre lembrados. Um tirano deve manter-se pela força e não pela boa vontade de seus súditos.”
E, assim, eis-me chegada ao último, mais destacado, mais selvagem e mais importante dos
mandamentos de Maquiavel.
10º — Pensai exclusivamente na guerra. — A guerra é a principal preocupação do superbruto
maquiavélico. “Um príncipe”, escreve Maquiavel, “deverá dedicar-se exclusivamente à arte de matar, pois a guerra é a única arte a que se deve dedicar um governante.” Um príncipe nunca deve permitir que sua atenção se distraia dos objetivos militares. Em tempo de paz deverá sempre preparar-se para a guerra. Suas palestras, seus estudos, seus jogos, suas leituras, suas mais sérias meditações deverão centralizar-se na única questão de saber como conquistar partidários.
No estado maquiavélico todos os caminhos conduzem à guerra. E se naquele tempo a guerra
era tão importante, devemos isso ao fato de que todos os países eram governados — ou desgovernados — por discípulos de Maquiavel. Suas éticas eram sobretudo as do militarista e do político. Em nossas relações de indivíduo a indivíduo, é certo que realizamos algum progresso na busca de um código decente de ética. Mas nas nossas relações de nação para nação não saímos até agora do egoísmo imperialista, das mentiras diplomáticas e da exploração selvagem; nas nossas relações internacionais não apenas seguimos como admiramos a brutalidade de Maquiavel. Seus discípulos são sempre encontrados entre os principais filósofos, historiadores e estadistas. Lorde Bacon, uma das mais penetrantes mentalidades, aconselha, em todas as controvérsias diplomáticas, a fórmula maquiavélica de “muita hipocrisia e pouca honestidade.” Thomas Cromwell, o ministro de Henrique VIII, da Inglaterra, considerou O Príncipe a “quintessência da sabedoria política”. Macaulay, que foi talvez o maior historiador do século XVI, encontrou nas obras de Maquiavel “muita elevação de sentimento”.
Em 1914, a ética de Maquiavel, pregada e praticada pelos principais estadistas do mundo,
transformou-se na mais vergonhosa carnificina da História. Hoje, as suas doutrinas selvagens são ainda as regras aceitas e praticadas pelos ditadores, pelos guerreiros, pelos imperialistas, pelos políticos e por todos os demais inescrupulosos opressores da raça humana.



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